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Azul

Acabo de abrir as cortinas para olhar o céu. É que o dia está imensamente lindo e eu não consigo pensar em uma forma mais adequada para iniciar esse texto. Na verdade, o tema central não diz respeito ao clima do dia, mas achei que a alusão talvez funcionasse, já que a cor anteriormente escondida pelas cortinas sempre me inspira. E a cor é, mais precisamente, azul. Azul porque é a cor predominante dos meus céus favoritos (os céus de outono), azul porque é a cor que amo, que me cativa, que me paralisa. Porque as minhas memórias mais antigas como aluna estão associadas ao meu primeiro contato num universo colorido e mágico: o Jardim de Infância Mundo Azul. E porque há quinze anos, nesse mesmo local, a minha primeira palavra direcionada a minha primeira professora foi azul.                                                                             

Bem, após introduzir o texto de uma maneira bem peculiar, é chegada a hora de dar início ao que realmente interessa. Terei que ser muito breve, pois já gastei um parágrafo e meio com a tentativa de uma inspiração. Então, sem mais delongas, faço questão de aproveitar a menção anterior as minhas memórias. Lá atrás, na distância do tempo, há quinze anos, quando eu ainda era uma menininha de quatro e cinco anos, comecei a ser alfabetizada no Mundo Azul. Foram dois anos de muitas cores, tentativas fracassadas de entender o mundo, desenhos, lápis, cheiro de infância, letras avulsas e amigáveis para uma criança tímida e quieta.                                              

Todo meu processo de alfabetização foi transferido para uma nova escola no Paraná, aos seis anos de idade. Lembro-me do meu primeiro dia de aula (ou um dos) em que a professora estava falando sobre a junção de duas letras, que formariam um determinado som. Então, ela perguntou para a turma: “B e A?”. Eu, sentada em uma daquelas mesas redondas, coletivas e coloridas, respondi orgulhosamente: “BA!”. Ela instantaneamente olhou e apontou para mim repetindo a pergunta, como se estivesse me parabenizando, de modo que eu repeti a resposta, alegre por saber e mostrar a todos que estava certa.                                                                        

Não tive dificuldades ao ser alfabetizada, mas admito que ainda hoje faço confusão com a sequência das últimas letras do alfabeto. Na realidade, algo sobre a escrita me trouxe muito incômodo quando pequena e eu não sabia lidar com isso. Nasci com hiperidrose, o que faz com que minhas mãos suem em excesso e sem causa. Lembro-me de uma situação na sala de aula em que a professora nos entregou folhas mimeografadas para uma atividade. Após eu colar no caderno e iniciar a atividade nela, a minha folha desfigurou-se pelo suor (muito suor!). Aos sete anos, fiquei muito constrangida e a partir daí, percebi que algo era diferente em mim. Muitas situações embaraçosas surgiram e tive que aprender a lidar com isso. Eu odiava quando pediam para dar as mãos! Felizmente, estou prestes a experimentar um produto alemão chamado Antyhidral e que promete dar um jeito nisso, apesar de não haver cura.                           

Bem, posso dizer que meu primeiro evento de letramento fora da educação foi com cartinhas. Escrevia muitas cartinhas, principalmente para a minha tia. Era realmente uma atividade muito divertida para mim, e eu ficava muito feliz em escrever cartas. Segue anexo:  

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Depois das cartinhas, passei para uma experiência diferente. Comecei a escrever em diários. Meu diário mais antigo é cheio de erros ortográficos e hoje é engraçado reler tudo que escrevi. Percebo que ter registrado minha vida em diários foi uma das coisas mais inteligentes que já fiz e pretendo manter esse exercício vivo por muito tempo. Quero um dia ler e recordar cada detalhe da minha vida, cada etapa, cada transformação – e derramar algumas lágrimas de emoção, talvez.                                               

Se por um lado a escrita me conquistou rapidamente, por outro, a leitura não ganhou espaço na minha vida tão cedo. O primeiro livro que li fora da literatura infantil, gibis ou revistas foi uma versão curta de Beleza Negra, escrito por Anna Sewell, mais ou menos aos treze anos. Li-o durante as aulas na biblioteca da escola e apesar de ter gostado, de realmente adorar o ambiente, ler livros era um exercício cansativo para mim. Não conseguia compreender como era possível as pessoas lerem tantas páginas! Os próximos foram Aventura no Império do Sol, de Silva C. Franco, cujo livro me ensinou que não posso ler em carros, e o mangá Cinderalla de Junko Mizuno. Depois desses, estagnei. Eu simplesmente não pensava em livros, em ler.      

Quando adolescente, costumava ver minha tia e minha mãe lerem (muito Sidney Sheldon) e impressionava-me a rapidez com que elas o faziam. Essa ideia parecia-me muito bonita e quando me dei conta, estava lendo. Lia livros de literatura juvenil, como Diário de um Banana e Querido Diário Otário. De O Pequeno Príncipe passei para romances de vampiros (pois é…) e finalmente conheci Pollyanna de Eleanor H. Porter, o livro que foi decisivo para a minha trajetória como leitora. Foi definitivamente um marco inicial a uma profunda paixão pela leitura. A partir daí, posso citar outros títulos que acrescentaram em mim doses de amor por livros. Não posso deixar de mencionar a Bíblia, que é o livro para se ler e reler, reler, reler, reler, reler…                                    

Hoje, leitura e escrita fazem parte de tudo que faço. Para espairecer, fazer trabalhos da universidade, organizar-me na agenda, fazer anotações, escrever no diário, pesquisar, estudar, listar compras, conversar nas mídias sociais e enfim, tudo em que é possível. Agora, eu realmente preciso finalizar esse texto, mas não sei como. O que sei é que, em uma cidade chuvosa como a minha, deve-se aproveitar dias bonitos e ensolarados como esse. Portanto, deixe-me ir apreciar o lindo azul ao som de gorjeios incansáveis.

Autora: Bruna S. Furlan
Escrito em junho de 2017

MEMORIAL LINGUÍSTICO: palavras versus silêncio

Sempre fui um tanto tímida e acho que é por isso que meus pais não se lembram de “coisinhas engraçadinhas” ditas por mim quando pequena. Todos lembram que minha irmã quando era pequena dizia “quéio subi sicada”, ou quando a perguntavam a velocidade do carro: “caienta poi hóia!”. Todos lembram que a primeira palavra pronunciada por meu irmão não foi “mamã”, tampouco “papa” e sim, perfeitamente, com todas as letras e foneticamente correto, “faca”. Para o meu descontentamento, ninguém se lembra de “coisinhas engraçadinhas” ditas por mim. Talvez quando pequena, eu não fosse de falar muito. Quer dizer, aprendi a falar sem quaisquer dificuldades, eu só não era muito fã das palavras. Tenho alguns pressupostos para legitimar essa minha tese.

Fui uma criança tranquila, não dei muito trabalho para os meus pais. Em compensação, minha irmã era daquelas que chorava mares, birrenta e ranhenta, inclusive depois que eu nasci, ficou emburrada e não falou durante dois dias com minha mãe. Quando elogiavam seus cachinhos dourados já fazia bico, e na hora de tirar fotos para a escola, quase rosnava de tão brava! Já eu, sempre calada, saia com cara de “songa monga”.

Aos quatro anos, quando ainda mal me conhecia por gente, comecei a frequentar a escola, o que me causava certo pânico. Minha mãe levava-me e quando chegava a hora de entrar para a fila… Ai, meu coração! Na sala de aula, eu não era quieta, eu simplesmente não falava, não falava! A professora sempre tentava extrair palavras de mim, mas eu optava por… “Não dar nem um pio”. Passei por algumas circunstâncias com essa minha escolha de não falar. Duas foram as mais marcantes. Começarei com a menos suja: foi quando brincávamos de esconde-esconde e para minha sorte, a professora, estrategicamente me escolheu para contar. Distante de todos, a “tia” da escola avistou-me lá, solitária, e claro, preferi não explicar que era apenas uma brincadeira, por fim saiu piedosamente: “Ah, tadinha, ficou de castigo!”. Fiz cara de “songa monga”.

Já meu segundo aperto – concluí que essa circunstância foi de fato, um aperto – seria um verdadeiro pesadelo para uma criança mais velha. Felizmente, fui salva por uma consulta dentária. Segundos depois de a professora deixar a sala por poucos instantes, senti que precisava usar o toalete. Encontrei-me em uma das piores situações vividas durante os meus quatro anos de vida! Era urgente! Eu estava decidida a pedir algo para a professora pela primeira vez, mas ela não estava lá. Os poucos instantes foram suficientes para eu precisar de um banho e de roupas novas, pois quando ela chegou, já era tarde demais. Logo, meu resgate veio em forma de pai para ir ao dentista e um brilho do céu o fez levar-me para casa antes, sem que eu nem houvesse comentado sobre a sujeirada dentro da minha calça escolar.

Até que em um belo dia, para a alegria e pulos da professora, eu resolvi falar. Não foi uma tarefa muito difícil, mas exigiu-me certo empenho antes do ato. Foi em uma atividade na qual a professora mostrava-nos, individualmente, peças geométricas coloridas. De acordo com as minhas memórias, começou com um triângulo vermelho. Permaneci quieta. Depois, um retângulo amarelo. “Há, fácil, um retângulo amarelo! Mas eu não vou falar…” pensei. Finalmente, um círculo azul. Qual era a cor?… “Azul!”, murmurei. Pronto, é certo que a professora nem tentou disfarçar sua alegria; sorriu de um canto da testa até o outro, saltitou e foi toda boba contar a todos. De repente é esse o motivo de eu gostar tanto da cor azul.

Aos seis anos eu e minha família nos mudamos para o Paraná. Não recordo de haver interferências em meu vocabulário ou sotaque, mas se sim, foi durante um período curto e findo, pois em pouco tempo voltei para minha cidade natal, Joinville. O bom é que eu já não resistia mais às palavras e até as usava na escola, (com certo esforço).

Cresci e ainda sou um pouco tímida, mas fui perdendo o medo de falar e hoje, posso dizer que falo um número suficiente de palavras por dia, embora eu faça certa seleção delas. Em casa fui ensinada a não falar palavrões, não xingar nem maldizer as pessoas. Bom… Eu diria que dos 11 anos adiante não fui um bom exemplo de “boca limpa” – tenho provas registradas nos meus diários – mas conforme o tempo passou, resolvi que não faria mais uso de palavras feias (assim as considero). Hoje, sou fã das palavras bonitas e gentis.

Quanto ao uso de gírias, é impossível escapar, sério! Mas como já disse, faço seleção das palavras que utilizo. Diria que meu vocabulário já foi bem mais repleto de gírias do tipo, “as mais faladas do momento”, como “véi, mano, orra”. As ainda presentes são aquelas tão, tão comuns que parecem ser parte fundamental do vocabulário, como “cara, tipo, meu, né, caramba” e por aí vai, mas devo não lembrar de todas pois eu as solto involuntariamente. Ah! Peraí, tem uma que puts, não dá para esquecer, pois todo joinvillense já usou ou usa essa danadinha: o famoso “égua”. Após muita experiência com essa palavra percebi que ela é perigosa. Foi quando eu estava conversando com uma pessoa tipo, super formal e eu soltei um “égua”. Depois dessa, tentei removê-la do meu vocabulário, mas meus esforços malogram até hoje.

Fugir de gírias é uma tarefa um tanto trabalhosa. Elas estão em todo lugar! É verdade que em algumas situações somente elas exercem o papel de exprimir certas emoções, mas não gosto de exceder no uso delas e, em minha opinião, não são nada elegantes. Quanto à escrita, gosto de escrever (seria mais adequado dizer digitar, contemporaneamente falando) as palavras da forma que são, mas não tem problema comer umas letrinhas ou uns acentos na hora da pressa, ?!

Ainda a despeito do meu vocabulário, tenho recentemente tentado um exercício novo com o intuito de mudar alguns aspectos nele. Percebi que a palavra “legal”, na verdade, não é legal. As pessoas falam “legal” para tudo, de modo que o elogio nem mais elogio é. Por exemplo: Tirou dez na prova de matemática? Legal! Comprou um carro novo? Legal!… Quando na verdade tirar dez na prova de matemática não é legal, é sensacional! Comprar um carro então? Uau, é incrível! E mais ou menos assim, percebi que utilizar os adjetivos de forma variada é bacana pra caramba e o efeito disso é muito maneiro, aliás, falar “legal” para tudo é uma resposta muito chata e nada simpática.

Pois bem! Atualmente, estou explorando o universo das letras. Tem sido uma baita experiência e admito; muito desafiadora, mas estou me descobrindo nela. Não resisto mais às palavras, aliás, acho que quando era pequena, eu gostava sim das palavras, apenas não sabia articulá-las bem. Afinal, elas têm poder! Uma bem curtinha, mas não pensada, pode causar um estrago danado! Outras, não ditas, podem mudar histórias. Tudo porque, embora eu só tenha me dado conta há pouco tempo, elas são mais do que somente uma “forma de comunicação” ou “registro”. As palavras revelam valores e até os modificam, revelam personalidades e são parte essencial da humanidade. Por isso, acredito que devem ser usadas para o bem, e na dúvida, faça como eu quando pequena: fique em silêncio!

 Autora: Bruna S. Furlan
Escrito em novembro de 2016